Inconstante e imbecil, caminhava convicta da imutabilidade dos seres, da imutabilidade da vida, da imutabilidade do mundo. Acreditava com uma fé quase religiosa que o mundo surgiu tal qual é, e assim sempre será. Ela ia vestida como de costume, nem sequer notava sua indumentária supérflua. Segurava uma corda na qual havia, na outra ponta, uma coisa viva que latia, chamada Sophia. Esta, consciente do mundo que a cercava, guiava a outra sem que ela percebesse para um local onde existisse algo mais que o vazio que nos cerca.
Suas roupas a acusavam de classe média, e, aos seus 16 anos, ansiava pela falsa sensação (logo percebida) de liberdade dos 18 anos. E continuava sempre andando, a esmo para ela, mas num rumo que apenas Sophia poderia precisar. Olhava as ruas (este labirinto de corredores), os mendigos medÃocres que jaziam vivos nas calçadas, os garotos sem brilho a pedir comida, os pássaros que voavam para uma árvore solitária, as pessoas vestidas (escondidas) em suas roupas esquizofrênicas que apenas passavam, quando seu celular toca: Tan tan ta ram! Tan tan ta ram!
- Filha, volte logo para casa.
- Ai mãe! Deixa de ser chata. Vou voltar logo, logo. Tchau.
Foi quando ela percebeu que estava perdida! Onde estão todos? Cadê o asfalto? Cadê os carros? E as pessoas em suas roupas esquizofrênicas? Está tudo escuro! Onde estou? Tudo estava aqui antes de o celular tocar! Estaria eu delirando? Foi culpa desta cadela estúpida! Estúpida!
- Cadela estúpida!
A escuridão perpetuava-se naquele ambiente sombrio e gélido. As lágrimas de desespero rolaram soltas na face daquela garota, manchando sua maquiagem. Sophia, enternecida, lambe-lhe a face. E Sophia some.
- Sophia, onde você está? Sophia!
Ouve-se um latido isento de imagem. Tentando então enxugar suas lágrimas, não consegue. Percebe então que está com seus óculos escuros, e os retira.
- Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah!!!!
Um grito de dor! Uma terrÃvel luz invade seus olhos e faz doer sua cabeça. Demora alguns minutos até que seus olhos acostume-se com tanta luz. E ela vê Sophia. E vê o mundo. Ela vê! Vê tudo! E o mais incrÃvel, vê a ela mesma! Vê seu boné, uma trava neural que impede sua expansão cerebral! E arranca-o e o lança para longe. Seus anéis, pulseiras, piercings, brincos, algemas medievais do mundo moderno, são arrancados. Olha seus tênis, ferraduras que a impedem de andar com seus próprios pés! E arranca-os! Joga fora sua ração de refrigerante, e joga também seu disk-man que tocava Bequistritibói, o preenchimento mental do vazio de sua alma. Sua mochila, com uma revista dita feminina, com sua agente marcada de efemeridades idiotas, com seu livro do colégio esquecido e odiado, é lançada com ódio! Olha para suas roupas, e arranca sua saia e rasga sua camisa, verdadeiras armaduras que não protegem, mas escondem! Olha seu sutiã e sua calcinha, focinheiras genitais, e, com furor e num único e majestoso movimento, estraçalha-os e seus pedaços fogem com o vento. Ela está nua, o povo atônito, parvo. Ninguém entende nada. Apenas ela e sua cadela Sophia. Ela lança um olhar para aquele povo, ainda vestida de sua máscara. E chove uma chuva grossa que lava os últimos resquÃcios em seu corpo deste mundo. Sem máscaras, sem peso, sem preconceitos, sem dogmas, mas com ela mesma em si encontrada, ela voa.
Nos jornais de todo o mundo aparecem manchetes sobre uma garota nua que podia voar. Logo encontraram sua mãe:
- Não sei em que eu errei! Ela sempre foi tão boazinha! Como isto pode acontecer?!
A população clamava por justiça! Como aquela garota ousava voar nua pelo mundo? Que despudor! Que falta de vergonha! Ela é um mau exemplo para nossas crianças! Daqui a pouco elas também vão querer voar, jogando-se de janelas e se machucando. Ou pior, vão querer também andar nuas!
O governo, eficiente em manter a ordem (nos pobres) e o progresso (dos ricos), logo chamou a força aérea. Caças F-16 voavam no céu. A população aplaudia.
- Libélula vermelha, mantendo contado visual com o alvo. Eliminar?
- Positivo.
- Mas o alvo é uma garota!
- A ordem é de eliminar o alvo. Atire!
E o gatilho foi acionado. Os mÃsseis voavam indiferentes ao alvo. Indiferentes a tudo. Os mÃsseis jamais entenderiam mudança. E mudança foi o que ocorreu à garota. A mudança verdadeira, que foi não a de acrescentar, mas de retirar principalmente os preceitos ignorantes que permeia este mundo, circundam nossos corpos e invadem nossas consciências ( já inconscientes) . sem saber de nada disso, eles atingem o alvo.
- Alvo atingido, libélula vermelha. Queda prevista no setor 5.
- Positivo. Retorne à base.
O povo vibrava! Vitória! Mas a garota não morrera! Ela cai, sangrando muito, queimada, alguns ossos estraçalhados. E o povo vibrava mais! Morre! Morre! Morre! E começam a surrá-la. Chega a polÃcia para pôr ordem naquela balbúrdia! É incrÃvel, o povo só sabe fazer isso! – pensava a polÃcia. O povo afasta-se, e ela recebe outra surra. E vibram, e riem, logo aparecem câmeras, vendedores de pipoca e cachorro quente, meras moscas que seguem a boiada.
Afastam-se todos, chega o rabecão. Mas ela ainda não morrera! Depois de compreender tudo, de ver tudo, de enxergar ela mesma, ela não quer morrer! Ela quer mudar o mundo! Ela pode mudar o mundo! Se somos nós os constituintes do mundo, podemos mudar! Olha a rua em que se encontra, cercada de muros. Ela está presa, todos estamos presos! Ela pode ver a angústia escondida em risos, a dor disfarçada de batons, o ódio entrelaçado em falsas palavras de amor, a miséria unida à esperança! Ela vê! Não, ela deve viver! Arrastando-se, chega até um muro com cheiro de urina adormecida. Com muito custo, levanta-se. Estupefato, olham todos aquela cena de força. E, com seu sangue, ela escreve a palavra LIBERDADE! Então lança seu último suspiro, e morre.
Morre, mas apenas fisicamente, pois chuva alguma, homem algum, máquina alguma, dinheiro algum conseguiu matar a liberdade escrita a sangue, que ficou gravada nos corações de todos os jovens e de todos os homens que encontraram a cadelinha Sophia. Esta, sempre a espera de alguém que queira acompanhá-la.
autor: http://servicioskoinonia.org/cuentoscortos/articulo.php?num=008